A voz da terra: línguas indígenas mantêm viva a memória ancestral em MS
Mato Grosso do Sul abriga oito línguas indígenas, ligadas a cinco famílias linguísticas
| MIDIAMAX/LETHYCIA ANJOS
Elo entre ancestralidade e território, a língua reflete a identidade cultural de todo um povo. No Brasil, embora o português seja considerado o idioma oficial e predominante, muito antes da colonização milhares de povos indígenas já se comunicavam por meio de seus próprios idiomas. Atualmente, estima-se que existam 274 línguas indígenas no país — oito delas em Mato Grosso do Sul.
Neste Dia Nacional dos Povos Indígenas, o Jornal Midiamax traz uma reportagem que explora a diversidade cultural e linguística de um povo que resiste em meio às tentativas históricas de apagamento.
Ayvu porã: Fala bonita (Guarani)
Aqui, são mais de 100 mil indígenas pertencentes a oito etnias — Guarani, Kaiowá, Terena, Kadiwéu, Kinikinau, Atikun, Ofaié e Guató —, que abrigam a terceira maior população indígena do Brasil. Em 12 anos, essa população cresceu 51% em Mato Grosso do Sul, saltando de 77.025 pessoas em 2010 para 116.346 em 2022, segundo o Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Contudo, mesmo com o aumento, o Estado perdeu uma posição no ranking nacional se comparado ao Censo anterior, ficando atrás do Amazonas (490,9 mil) e da Bahia (229,1 mil).
Mas quando se trata de diversidade linguística, Mato Grosso do Sul ocupa um lugar singular na formação da identidade cultural brasileira. Isso porque, para os povos originários, a língua vai além de um simples meio de comunicação – ela preserva a memória ancestral, as cosmovisões e a própria identidade. Não à toa, a ONU (Organização da Nações Unidas) declarou a década de 2022 a 2032 como a ‘Década Internacional das Línguas Indígenas’, diante de um cenário onde uma língua indígena morre a cada duas semanas no mundo.
Hãdu guati: Território das palavras (Terena)
No coração do Pantanal e do Cerrado, Mato Grosso do Sul abriga oito línguas indígenas, ligadas a cinco famílias linguísticas: O tronco Tupi, representado pelas línguas Guarani (Kaiowá, Mbya e Nhandeva); Tronco Macro-Jê, que têm as línguas Ofayé e Guató; Língua Terena e Kinikinau, pertencentes à família Arawak; enquanto os Kadiwéu integram a família Guaicuru.
Entre essas línguas, algumas estão em processo de extinção. É o caso da Guató, Ofayé e Kinikinau, que possuem poucos falantes. Um ponto fundamental para entender esse processo de extinção são os impactos da imposição histórica do português como idioma oficial e a ausência de políticas públicas contínuas. Embora a Constituição de 1988 reconheça as expressões culturais como patrimônio imaterial, a legislação brasileira ainda é falha no que diz respeito à diversidade linguística. Ao contrário de países como México e Paraguai, que estabelecem direitos linguísticos explícitos em suas constituições, o Brasil carece de normas mais eficazes.
Voz ameaçada
Professor e pesquisador da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), Rogério Vicente Ferreira, explica que há registros de apenas dois ou três falantes dessas línguas mais ameaçadas, o que torna urgente ações de preservação dessas formas de comunicação.
“Preservar uma língua não se resume a ter um livro escolar. Envolve políticas linguísticas, respeito à identidade e enfrentamento do preconceito”, destaca.
Segundo o pesquisador, jovens indígenas têm deixado de falar sua língua de origem por medo da discriminação ou por falta de referências culturais. No entanto, esse distanciamento cultural não é recente. Em 2016, quando ainda se comemorava o *“Dia do Índio', esse fenômeno era perceptível em Campo Grande.
Um trecho de uma reportagem publicada naquele ano pelo Jornal Midiamax ilustra bem essa realidade:
“Andando pela Aldeia Urbana Marçal de Souza, onde a maioria é da etnia Terena, as caixas de som posicionadas nas ruas — enquanto as pessoas se reúnem na tradicional roda de tereré — tocam o som do sertanejo. Com celulares em mãos, percebemos que a tecnologia e os costumes do povo da metrópole fazem parte da vida dos índios que habitam Campo Grande.
Maria Silva, 18, estudante, contou que seus pais nasceram na aldeia, mas vivem na cidade há muitos anos, onde ela também nasceu. ‘Não falo a língua terena e sei muito pouco sobre as tradições. Nasci e cresci na cidade, me sinto bem aqui, faço parte da cidade já’, afirmou.
Outra ascendente indígena que estava no local batizou seu filho de ‘Anthony’, se pronuncia igual ao inglês. ‘Acho bonito, gosto de nomes diferentes’, explicou a jovem.'
*Desde 2022, a Lei nº 14.402, originada do Projeto de Lei 5466/19, de autoria da então deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), alterou a nomenclatura de “Dia do Índio' para “Dia dos Povos Indígenas'. A mudança busca evidenciar a diversidade cultural dos povos originários, em vez de reforçar o estereótipo associado ao termo genérico e estigmatizante “índio'.
Xõno Kodhe: Lugar de escuta (Ofayé)
Nesse contexto, pensando em formas de resgatar a memória lexical — o conjunto de palavras relacionadas a uma mesma área de conhecimento — e promover a valorização identitária das línguas indígenas, Rogério desenvolveu, entre 2008 a 2021, o projeto ‘Um estudo sobre as línguas indígenas de Mato Grosso do Sul’.
“O estudo deu origem ao dicionário Ofayé, intitulado ‘Palavras Ofaié: Um Resgate da Memória Lexical’. Considero este livro um excelente resultado, pois atende às necessidades desse povo e colabora para a revitalização linguística. Ele foi utilizado na escola e, posteriormente, serviu como base para a elaboração do Dicionário Pedagógico, no âmbito do projeto Saberes Indígenas na Escola', conta.
As universidades sul-mato-grossenses também exercem papel importante nesse esforço. A UCDB (Universidade Católica Dom Bosco) e a UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) lideram pesquisas por meio da Faind (Faculdade Intercultural Indígena). Enquanto a UFMS e a UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul) desenvolvem estudos com os povos originários por meio de seus pesquisadores em diversas áreas — embora essas iniciativas tendam a ser mais individualizadas.
“A academia colabora por meio da documentação linguística. Isso envolve o registro de línguas em risco de extinção, com gravações de falas, desenvolvimento de gramáticas e organização de dicionários. Esses materiais são essenciais não apenas para preservar o conhecimento sobre os idiomas, mas também para facilitar futuros esforços de revitalização', explica Rogério.
No âmbito da educação básica, em 2023, o Governo do Estado, anunciou a produção de materiais didáticos para alfabetização e letramento de crianças indígenas. O projeto abrange as línguas Guarani, Kaiowá, Kadiwéu e Terena e faz parte do programa “Alfabetiza MS Indígena'.
Arakuaa: Sabedoria (Guarani)
Rogério destaca que a formação de novos linguistas indígenas, como o professor Aronaldo — do povo Terena e doutorando na UFRJ —, traz esperança de um futuro em que cada povo possa contar com especialistas atuando diretamente em suas comunidades. No entanto, ainda há um longo caminho a percorrer. A UFMS, por exemplo, não conta com um corpo docente formado por linguistas especializados e, segundo Rogério, tampouco tem buscado contratar profissionais dessa área para atuar com as línguas indígenas em Mato Grosso do Sul.
“Hoje, destaca-se a professora Onilda Sanches Nincao, que leciona na Licenciatura Intercultural Indígena em Aquidauana. Pelo menos por enquanto, cabe aos não indígenas se debruçarem sobre as mais variadas línguas faladas no país — até que haja, de fato, um pesquisador indígena para cada povo'.
Além disso, o pesquisador ressalta que, antes da criação do Ministério dos Povos Indígenas, as políticas voltadas às línguas partiam, geralmente, de demandas articuladas por pesquisadores e pelas próprias comunidades. Com a criação do Ministério, as ações passaram a abarcar outras pautas com mais intensidade, como a territorialização e a saúde indígena.
Sinal de identidade
Ainda na infância, Ondina Antônio Miguel percebeu que a forma de comunicação de três dos seus sete filhos era diferente do habitual. Enquanto a maioria das crianças da mesma idade balbuciava as primeiras palavras, Élcio, Everton e Maria Eliza apenas apontavam o que queriam. Mas a voz que lhes faltava era expressa através das mãos.
Assim, de forma intuitiva e caseira, nasceu na Aldeia Cachoeirinha, em Miranda, uma nova forma de comunicação. Mais tarde essa linguagem seria reconhecida como a Língua Terena de Sinais, primeira língua indígena de sinais do Brasil.
Mas o caminho até o reconhecimento foi árduo. Durante quatro anos, um dos filhos de Ondina ficou fora da escola. Até que a família foi levada à cidade de Miranda em busca de acolhimento e acesso à educação. Na terceira escola onde bateram à porta, a direção não apenas aceitou as crianças, como acolheu toda a família. Ainda assim, a rotina exigia percorrer diariamente cerca de 30 quilômetros, entre a aldeia e a escola.
“Meu filho Élcio concluiu o Ensino Médio e se mudou para Campo Grande em busca de novas oportunidades. O Everton também terminou os estudos e hoje mora comigo. Já a Maria Eliza seguiu seu caminho, estudou, casou-se com um surdo e tem dois filhos fluentes em Libras. Eles moram na Capital', conta a mãe, orgulhosa.
Com o convívio escolar mais intenso que o familiar, os filhos de Ondina passaram a se comunicar majoritariamente em Libras. Assim, passaram a escrever em português — mas com a estrutura gramatical própria da língua de sinais.
Pertencimento
Passados 30 anos, em 2023, uma lei municipal oficializou a Língua Terena de Sinais. No mesmo ano, Ondina participou do III Encontro de Surdos Terena. Resultado de uma longa luta pelo respeito à cidadania dos filhos e que se estendeu a toda a comunidade surda indígena da região.
“Já enfrentei muitos obstáculos com meus filhos. Passei frio, fome, chorei muito. Fui discriminada junto com eles e sei o quanto a sociedade tem um olhar preconceituoso contra surdos e indígenas. Por isso, estou nessa luta. Enquanto viver, nunca vou me calar diante de qualquer tipo de preconceito e discriminação contra os surdos indígenas', declarou em entrevista ao Governo do Estado.
Hoje, Ondina fala quatro línguas: Terena, português, Libras (Língua Brasileira de Sinais) e a Língua Terena de Sinais. Mas, para aprender Libras e, ao mesmo tempo, preservar a língua de sinais desenvolvida na comunidade, ela precisou unir esforços em uma construção coletiva pela inclusão.
“É uma demonstração de que a diversidade também se expressa na comunicação visual, além da oralidade. Reforça ainda mais a identidade e o pertencimento dos povos indígenas surdos', afirma Rogério Ferreira.
Resistência
No entanto, para que essas línguas sobrevivam, não basta a ação isolada dos pesquisadores e das próprias comunidades. Rogério destaca que é preciso que a sociedade enxergue os povos indígenas como nações, com direitos históricos e culturais inalienáveis.
“É essencial que as escolas, principalmente em cidades como Dourados, Miranda e Sidrolândia, incorporem o ensino sobre essas comunidades em seus currículos. Conhecer é o primeiro passo para respeitar', defende o professor.
A Constituição Brasileira reconhece as línguas indígenas como patrimônio cultural imaterial. Contudo, diferentemente de outros países, o Brasil não lhes confere status oficial ou políticas abrangentes de promoção. Isso compromete a sobrevivência desses idiomas, que enfrentam obstáculos como o preconceito, a imposição do português nas escolas e a falta de recursos didáticos.
Além disso, o professor destaca que, embora a Lei 11.645/2008 preveja o ensino de história e cultura indígena nas escolas, as políticas públicas voltadas à linguagem permanecem restritas.
“As ações mais efetivas foram para a educação. No entanto, faltam iniciativas robustas para além dela, como apoio à documentação cultural e à formação de linguistas indígenas', pontua.
Yvy ñee: Voz da terra (Guarani) — A década das línguas indígenas
Para tentar evitar a extinção de línguas ameaçadas, a ONU (Organização das Nações Unidas) lançou, em 2022, um ambicioso plano de 10 anos para apoiar as línguas indígenas em risco. Durante a sessão de lançamento da Década Internacional das Línguas Indígenas, realizada na sede da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), Csaba Kőrösi, presidente da Assembleia Geral, alertou que, a cada duas semanas, uma língua indígena morre.
Vale ressaltar que, embora os povos indígenas representem menos de 6% da população global, eles preservam mais de 4 mil das cerca de 6,7 mil línguas existentes no mundo, conforme dados do Desa (Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU). Contudo, estima-se que, até o final deste século, mais da metade de todas as línguas possa ser extinta, ou até mesmo um número ainda maior.
“Se queremos proteger a natureza, devemos ouvir os povos nativos e dialogar na língua deles', defendeu o presidente Kőrösi.
Barreiras linguísticas e violação de direitos
A barreira do idioma tem sido mais uma sentença para indígenas presos no sistema penitenciário de Mato Grosso do Sul. Detentos que mal compreendem o português — idioma oficial nos tribunais e delegacias — enfrentam processos criminais sem entender plenamente do que são acusados. Além disso, mulheres encarceradas têm o direito cerceado de se comunicar com suas famílias e entre si na própria língua materna.
Esse cenário motivou uma recomendação conjunta do MPF (Ministério Público Federal) e da DPE-MS (Defensoria Pública Estadual), que cobraram da Agepen (Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário) medidas para garantir a comunicação dos indígenas em seus idiomas de origem dentro dos presídios.
A orientação surgiu após visitas realizadas pelas duas instituições, junto ao Ministério das Mulheres, às penitenciárias femininas de Ponta Porã e Jateí, em junho de 2023. Durante as inspeções, as equipes constataram que mulheres indígenas estavam sendo impedidas de conversar entre si e com familiares em suas línguas nativas, sob a justificativa de “questões de segurança'.
Para o procurador Marco Antônio Delfino de Almeida e a defensora pública Zeliana Luzia Delarissa Sabala, autores da recomendação, a proibição do uso da língua materna representa uma violação sistemática de direitos humanos. Segundo eles, impedir a fala em línguas indígenas dentro das penitenciárias constitui ato discriminatório e atenta contra a dignidade da pessoa humana.
Diante disso, a recomendação solicitava a designação de profissionais capacitados, quando disponíveis, para atuarem como intérpretes ou facilitadores da comunicação entre os indígenas e os agentes penitenciários. Além disso, previa ações de capacitação e sensibilização de funcionários do sistema prisional quanto à diversidade cultural.
“A proibição de falar a própria língua é inconstitucional e injusta. Especialmente quando é o único meio de comunicação com familiares', afirmaram Marco Antônio e Zeliana.
Falta de acesso a intérpretes
Embora a recomendação tenha origem nas visitas de 2023, um levantamento da DPE-MS, realizado em 2024 e publicado pelo Portal Brasil de Fato, revelou que dos 206 indígenas até então detidos na Penitenciária Estadual de Dourados, 86% não haviam tido acesso a intérprete em sua língua durante o processo criminal. Grande parte sequer compreendia bem o português.
Em contrapartida, a Constituição Federal assegura o pleno exercício dos direitos culturais, reconhecendo os modos de viver, fazer e criar dos povos indígenas como patrimônio cultural brasileiro. A Resolução nº 287/2019 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) reforça que os indígenas em conflito com a lei devem ter o direito à presença de intérprete, preferencialmente alguém da própria comunidade, em todas as etapas do processo judicial.
Também no plano internacional, a Convenção nº 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 5.051/2004, garante o direito dos povos indígenas de manter e praticar suas línguas, além de exigir que os governos adotem medidas para preservá-las e promovê-las.
Em meio a essa polêmica, no mesmo ano, o Governo do Estado comunicou que os 195 indígenas custodiados até 2024, em Dourados, possuíam documentos como Certidão de Nascimento e CPF.
“Grande parte exerce ocupação produtiva dentro da unidade. Também estão matriculados no ensino regular e em plena convivência como preconiza as leis vigentes, tendo seus costumes e cultura respeitados”.
Nos pavilhões, local de convivência, alguns custodiados indígenas, com boa fluência em Português, atuam como intérpretes dos seus pares durante os atendimentos e recebem remição de pena por isso. Além disso, uma policial penal passou por qualificação no curso básico na Língua Guarani; e foi designado um perito antropológico pela Vara do Tribunal do Júri e Execução Penal de Dourados, o assistente social Leonardo Laurindo, nos casos necessários.
Língua, resistência e futuro
Iniciativas como a da Aldeia Cachoeirinha, onde se desenvolve a Língua Terena de Sinais, mostram que a identidade indígena também se expressa em múltiplas formas comunicativas, incluindo as línguas de sinais. Para Rogério, essa diversidade amplia a noção de patrimônio linguístico e reforça a urgência de sua proteção. A sociedade, por sua vez, tem papel fundamental nesse processo.
“É preciso enxergar os povos indígenas como nações, garantir seu direito à terra e combater o preconceito. A escola tem um papel essencial na formação de uma nova consciência', afirma Ferreira. Segundo ele, o conhecimento é o primeiro passo para a valorização e preservação da cultura indígena — e isso inclui suas línguas.
Enquanto ainda houver quem fale, escute e ensine, a palavra indígena seguirá viva.
💬 Receba notícias antes de todo mundo
Seja o primeiro a saber de tudo o que acontece nas cidades de Mato Grosso do Sul. São notícias em tempo real com informações detalhadas dos casos policiais, tempo em MS, trânsito, vagas de emprego e concursos, direitos do consumidor. Além disso, você fica por dentro das últimas novidades sobre política, transparência e escândalos. 📢 Participe da nossa comunidade no WhatsApp e acompanhe a cobertura jornalística mais completa e mais rápida de Mato Grosso do Sul.